sábado, 21 de fevereiro de 2009

Os olhos de Cristal


Sentada em sua cama, a princesa Cristal põe a ditar para seu escriba O Livro dos Sonhos, em que retratava ora em prosa, ora em verso as imagens que via a cada noite mal dormida. Curiosamente eram formas que ela não compreendia, pois Cristal fora batizada com esse nome por conta da falsa imagem que deu ao seu pai, o rei Palermo, quando a viu nascer. Encantado com a beleza da menina, de cabelos loiros quase brancos, e olhos igualmente claros como o cristal, o pai orgulhoso não pensou duas vezes em dar-lhe esse nome.

O rei severo, com o tempo passou a perceber que algo estava errado com os olhos da menina, que não encaravam o seu rosto barbudo, quando este a pegava no colo para brincar. Intrigado, um dia colocou a filha diante da janela de seu quarto, numa manhã de sol forte. E ai descobriu que a princesa, tão bela, não possuía visão. Cega de nascença, naquele reino jamais poderia enxergar o que se passava a sua volta. O que seria lamentável para uma nobre.

Então, o rei confinou a menina em uma das torres do castelo, como que presa numa bolha, até chegar aos 16 anos, quando passou a ser cortejada por príncipes de reinos distantes, que a viam apenas de longe, maravilhados por sua beleza, mas intrigados por ela nunca olhar nos olhos de alguém... Ninguém naquele reino sabia de sua cegueira, exceto o rei, a rainha e alguns serviçais...

A maioria dos pretendentes, diante do insucesso de conhecê-la de frente, desistia do pleito e retornava para casa, e os que insistiam junto ao rei para conhecer Cristal pessoalmente, só podiam assim o fazer mediante uma condição: jamais encarar seu rosto, antes do casamento. Ninguém aceitava tal proposta e todos saiam indignados com a crueldade do rei Palermo. Dois longos anos se passaram... Outros pretendentes vieram, e todos tiveram o mesmo destino...

A rainha de nome Esperança, em decorrência do destino de sua filha e a truculência do rei, passou a ser chamada pelos seus súditos de Tristeza, vivendo confinada na outra torre, aguardando o dia que os sonhos da filha se tornassem realidade naquele reino de estranhos. Alguém que Cristal via em sonho todas as noites, e que viria libertá-las daquela prisão. A princesa tinha o dom de, apesar de não enxergar nada, conhecer as pessoas ao seu redor apenas pelo tom de voz e o jeito de caminhar. Imaginava seus traços, e quase sempre acertava na índole (boa ou má) de cada um, sabendo separar o joio do trigo, coisa que o rei Palermo, sempre rodeado de conselheiros, não possuía tal visão...

Por ironia do destino, naquele reino de estranhos, existia um bom homem, com medonha aparência, que encantava a todos com seus versos livres, mas que afugentava a todos que o conheciam pessoalmente. Um homem sem família, que vivia encapuzado, com um olho vazado por um duelo quando jovem, e que naqueles tempos, só saia de seu quarto, no interior do castelo, ao anoitecer, para não encontrar ninguém. Predileto do rei Palermo por conta de seus versos encarados como profecias, o Poeta vivia sozinho, recolhido em seu mundo interior. E nele tinha devaneios por conta do amor que depositava na princesa Cristal, que toda noite quando vinha à janela, emitia um misterioso brilho nos olhos, fazendo o Poeta se esconder entre as árvores, com medo de ser visto ali na espreita. Quando voltava para seu quarto, um pequeno poema ia nascendo em seu interior, na mesma medida que a princesa quando deitava, passava a sonhar com o homem que escrevia versos tão belos, quase profecias em que ela queria a todo custo acreditar...

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