sábado, 21 de fevereiro de 2009

O tortei encantado


Assam a massa... Assim era o último verso em forma de palíndromo de um novo e enigmático poema que trouxe o novo cavaleiro do dragão negro até o outro lado do bosque Sem Fim, contornando às densas árvores, algumas com estranhas formas de troncos que pareciam gente...

Próximo ao Reino de estranhos, havia uma aldeia de um povo novo, onde morava solitária uma mulher sem igual, chamada Serena, filha de Ísis, e tida pelos vizinhos como curandeira, e pelos sacerdotes mais conservadores, como bruxa, tal o encantamento que sua culinária, seus chás e seus olhos radiantes proporcionavam a quem merecesse tal distinção.

Remanescente da misteriosa seita da Lua Prateada, que quatro vezes por mês se reuniam, vindo de todas as partes daquele reino e d’outros mais distantes, com seus capotes pretos, cobrindo corpos e rostos, e cujas integrantes possuíam mil encantos e receitas mágicas, passadas de mãe para filha, de geração em geração. Para aquela seita, o universo fora gerado por uma Deusa, que também nasceu de um útero imenso e universal. Os últimos relatos que Serena tinha, da memória familiar, remontavam à construção das primeiras pirâmides no Deserto dos Sonhos, contudo sabia que o início de tudo que conhecia vagava trêmulo entre a mitologia e a história mitificada. Todo o conhecimento que tinha veio de relatos orais, de tempos em tempos, quando a filha menor, precisava atravessar o Mar Vermelho interior...

Daquele dia em diante, sob o brilho da Lua Prateada, imenso móbile bailando no céu, a mãe passava à filha, já mulher, suas receitas guardadas a sete chaves, do segredo do bem viver, quando começava a ensinar os primeiros ingredientes secretos e o seu modo de preparo, ainda na tenra idade. Um deles era curioso ritual do Tortei Encantado, que necessitava de uma moranga nova, espécie de abóbora, que deveria ser colhida sempre na noite de Lua Crescente, para que a receita e o encantamento prosperassem ao redor de seu mundo exterior... Moranga que necessitava ser cozida e esmagada, passada em farinha de rosca até dar a tal “liga”. Em seguida, colocado o açúcar, precisava de uma pitada de sal e noz moscada ao gosto. Para a feitura da massa era preciso ovos e farinha. Depois, uma galinha, ainda viva... E, a seguir, misturando a carne branca desfiada com tomate, cebola, pimentão e outras coisas mais, dependendo da ocasião. Por fim, levando tudo ao fogo brando, mexendo e remexendo até ficar bom...

O tempo e o espaço tornaram mãe e filha distantes, mas graças a essas receitas, as duas permaneciam com a mesma “liga”, o que tornava a farinha em massa saborosa. Ao fazer a receita familiar, conseguiam se comunicar e pressentir o perigo que uma passava a outra, e pela receita, equilibravam o ambiente familiar e a saudade, palavra que não existia em seu vocabulário, até as duas se separarem. Viviam perseguidas, de aldeia em aldeia, pois a população não entendia seus poderes extraídos da lua e seu jeito de ser tão natural. Imaginem só! Em tempos remotos, em que todos seguiam a risca seus papéis, portando-se como personagens de um jogo, mulher ter opinião e escolher o que deveria fazer! Uma blasfêmia para os sacerdotes, uma afronta aos reis, um escândalo até mesmo para as nobres e submissas mulheres da Corte, sombras pálidas de seus Senhores. Estas eram quase escravas, embora não usassem ferros, nem fossem chicoteadas, mas viviam presas a própria masmorra interior, como se numa bola de cristal imensa, feito as galinhas, que retidas por um simples círculo de giz, jamais atravessavam sua invisível prisão...

Serena era diferente de todas, e isso chocava a homens e mulheres da região, que não entendiam seu jeito de ser livre como a Lua Cheia no céu, por isso vivia reclusa, como medo de perseguição.

Dizia antiga lenda ─ passada de pai para filho ─, que aquele que provasse do tortei encantado, em noite de Lua Nova, tornava-se um novo homem, e que se tivesse o azar de ser em Lua Minguante, minguariam todos os seus sonhos e bens. Porém, quem experimentava do tortei encantado, poderia até esquecer quem era, mas jamais esqueceria aquele prato, seu tempero e sua criadora. Notícias de outros reinos davam conta de que alguns ficavam destemperados antes da hora, o que só lhes dava dissabor. Mas aos que tinham a paciência de esperar que o tortei ficasse no ponto, e que jamais contavam a alguém o segredo da receita mágica, a esse nobre cavaleiro poderia acontecer uma Revelação... Naquele tempo calamitoso, as mulheres criavam receitas de bem viver, e os homens histórias de faz-de-conta entre seus pares...

Quando Prodigal, montado em seu cavalo baio, chegou ao outro lado do bosque, encontrou uma pequena casa. Serena tinha terminado de assar a massa encantada, colocando-a na janela de sua casa rústica para esfriar. O sol se encontrava no meio do céu e os cabelos ruivos, cor de fogo, daquela mulher despertaram no cavaleiro chama crescente, sem igual...

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