sábado, 21 de fevereiro de 2009

O livro dos Dias


Havia naquele reino de estranhos um livro misterioso, escrito por um poeta, tido por nobres e plebeus com um vidente, a frente de seu tempo, pela curiosa coincidência entre o que escrevia e o que acontecia ao seu redor. Seus versos eram tidos como previsões, profecias. Sua escrita enigmática seria num futuro distante tida como reveladora. Estudiosos se debruçariam sobre ela como se a mesma tivesse um código secreto, que ao ser desvendado poderia conter segredos do próprio tempo futuro.

No entanto, o poeta tinha inspirações, fruto não de visões mas de emoções que sentia sobre o próprio reino e seus habitantes aprisionados pelo tempo. Escrevia em couro seco de cabra com pena de ganso e corante de plantas. Escrevia ora a noite, ora de dia, sobre o futuro do presente, sobre o presente do futuro e sobre o futuro do futuro. Tempos verbais e não siderais. Não tinha a pretensão de ser profeta, apenas um poeta. As palavras dançavam em sua mente, mas não era vidente...

O bispo temia sua escrita, ameaçava-o seguidamente com a fogueira. Mas o poeta dizia que seus versos eram para o rei, que vaidoso, o tinha como seu artista preferido, dando-lhe proteção e abrigo dentro das muralhas do castelo.

O poeta reunia diversos poemas, que batizara de O Livro dos Dias, fruto de suas vivências, observações e opiniões sobre o reino e seus habitantes... Ainda não tinham inventado a imprensa. A Bíblia ainda era copiada página por página por padres copistas. Toda vez que tinha uma inspiração, recolhia-se aos seus aposentos humildes, para ali não esquecer as palavras que o vento lhe soprava nos ouvidos...

Eu tive um sonho
em que subia numa pequena árvore,
a pequena árvore do sonhos
e de lá do alto, tudo era encantado,
como um quarto crescente,
onde o mundo pequeno tornava-se imenso...
As palavras caminhavam sobre a linha do horizonte...
as gotas da chuva tornavam-se puro cristal,
o mal não tinha morada e a amada,
vivia enclausurada em seu quadrante solar...
E a morte vivia longe, lá no fim do mundo,
Porém podia estar a qualquer momento
Bem mais próxima do que pensamos;
Ao lado da ponte, onde mora o coração valente...

Terminados os versos, o poeta adormeceu em seu catre. Na manhã seguinte, foi acordado às pressas pelo chefe da guarda, que o conduziu a presença do rei. O poeta carregou consigo os versos que tinha escrito no dia anterior, para dar de presente ao rei, inspirado na princesa Cristal, batizada com esse nome por conta do brilho de seus olhos.

O rei abatido, inconsolável, mortificado contou ao poeta sobre a morte de seu filho preferido, o príncipe herdeiro, próximo à ponte elevadiça, quando voltava de uma caçada onde fora a caça ao invés do caçador, haja vista ter seu peito traspassado por uma flecha mortal... O rei vendo as mãos trêmulas do poeta, segurando o couro de cabra avermelhado pela tintura dos versos e suor das próprias mãos, pediu com rigor para ver o que estava escrito nele. E ao ler aquele poema, começou para o poeta sua dupla sina... De profeta do rei e poeta encantado pela princesa Cristal, prometida a um nobre de posto, mas não de sentimento, doutro reino distante... Não podia contar que o quadrante solar que ele se referia nos versos era justamente a janela do quarto da princesa, que se iluminava cada vez que ele a via, ao subir na árvore próxima ao local. Um poeta, naquele reino, era condenado a fazer somente profecias ao invés de escrever poesias, sob pena de ser aprisionado como outros tantos na masmorra do castelo... O livro dos dias , para sua glória e sina, seria lido de agora em diante, e através dos tempos, de forma mística e sobrenatural...

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