sábado, 7 de março de 2009

O olho do dragão...


Parecia um dia como outro qualquer, mas ao mesmo tempo era um dia sem igual.

Prodigal, antes de seguir em frente, lembrando-se dos ensinamentos de seu senhor, Lord Drago, pegou o Livro do Destino arremessando ao ar os sete dados, e o resultado caído ao chão remeteu sua leitura à outra curiosa citação latina:

- Transvolat in medio posita, et fugientia captat. [Horácio, Sermones 1.1.108] (Deixa para trás o que está no seu caminho e persegue o que lhe foge.)

De posse da espada do cavaleiro do dragão, pela primeira vez percebeu que entre a lâmina e o punho da mesma havia uma pequena bola de cristal, e naquele instante, como um relâmpago, lembrou-se do estranho ritual que seu senhor fazia a cada viagem, virando a espada ao contrário, na forma de uma cruz, e colocando a testa próxima aquele local. Recordou-se ainda que Lord Drago lhe dissera um dia que toda vez que o cavaleiro estivesse em dúvida sobre o caminho a seguir, deveria dar razão ao “olho do dragão”.

Naquele dia, Prodigal que era tão-somente a sombra fiel do cavaleiro do dragão, não entendera nada do que seu amo lhe falava. Agora, como que iluminado pelo relâmpago interior, o jovem repetiu o gesto do homem que lhe dera abrigo e proteção.

Quando o menino do lago, agora travestido de cavaleiro do dragão, espiou no interior da pequena e azulada bola de cristal da espada de seu Senhor, viu que por entre as centenas de árvores do Bosque Sem Fim à sua frente, uma pequena passagem secreta estava iluminada por uma misteriosa luz.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O "velho moço" e a garrafa quase vazia


Prodigal, cansado da viagem e com fome, decide descer do cavalo.
Como Serena continuava a observá-lo de dentro da casa, o jovem retira o elmo, joga ao chão o escudo e a lança, além da espada. Desarmado, ouve a porta da casa se abrir aos poucos... Lá de dentro sai uma bela mulher de cabelos dourados e olhos brilhantes.

Prodigal, que sempre foi um jovem de poucas palavras - ainda que em seu interior corresse um rio de ideias e sonhos -, não sabia o que dizer a mulher. Nem sabia se ela o entenderia. As mulheres daquele reino de estranhos não conheciam sequer os nativos com quem conviviam, quanto mais os viajantes, que vez por outra ali apareciam.

Por baixo da armadura, o jovem usava sua roupa de serviçal, e assim ficou, para descansar do peso e deixar a alma não tão pesada e dura, escondendo aquele fardo a ele imposto pelo destino, dentro do oco de uma árvore ao lado da casa da mulher encantadora. Sabia que de dia corria perigo, mas a noite, a escuridão era sua inseparável companheira. Seu rosto e corpo, longe do Lago Azul Profundo, envelheceram anos em pouco tempo...

O fiel escudeiro, agora feito Cavaleiro do Dragão Negro por força da fatalidade, pediu para provar daquele prato na janela esfriando. Serena compreendeu bem seus gestos e cortou grossa fatia para o viajante de cabelos grisalhos. Sua fama precedia seus passos naquele reino. Ela, como a maioria da plebe, sabia de suas andanças, aumentadas pelo clero e pela nobreza.

O homem sedento pediu a mulher água para se lavar. Ouvindo de imediato palavras que não soube traduzir. Parecia para ele grego, e de fato eram, um grego antigo:

- "ΝΙΨΟΝ ΑΝΟΜΗΜΑΤΑ ΜΗ ΜΟΝΑΝ ΟΨΙΝ." (Lava também teus pecados, e não só o rosto). Serena, a mulher de cabelo de fogo, como Sol, falava várias línguas, fruto de suas andanças (Insônia, a mulher do brilho de lua, mais o latim). Naquele reino muitas línguas eram faladas, mas poucos conseguiam se fazer entender.

Quando, após ela repetir pausadamente a frase, ele lembrou-se de um verso que seu Senhor, Lord Drago, sempre recitava, antes de ler o seu Livro do Destino: “Começar já é metade de toda ação”. De fato não era poema e sim um provérbio grego.

Mesmo ele não entendo nada, Serena, por linhas tortas, percebeu aquele desencontro e soube se fazer compreender na total incompreensão daquele tempo e reino. Aquela mulher que falara pela primeira vez em grego com ele, percebendo que Prodigal não a entendia, passou então a falar em latim, e ai estabeleceram uma cordial conversa até que a lua no céu começou a surgir entre os galhos das árvores do Bosque Sem Fim.

Prodigal tinha envelhecido um pouco na viagem e o cansaço fez que o mesmo adormecesse no alpendre da casa de Serena, sendo observado por ela, até que ruídos vindos do Bosque a afugentaram para dentro de casa.

- “Que aquele que ouve, desperte de seu pesado sono” - escrito no livro Apócrifo de João -, foi o que o soldado do castelo de Messiter disse a Prodigal, com uma lança encostada em seu peito, despertando-o de supetão.

- Quem são vocês?, perguntou o escudeiro, para sua sorte, sem a armadura e com as armas recolhidas por Serena.

- Nós é que fazemos as perguntas!, exclamou em tom irritado o chefe da guarda, continuando em tom áspero -, De onde vens e para onde vais? Cadê o Cavaleiro que as pegadas do cavalo negro trouxeram a ti? Diga-me logo velho louco, antes que minha espada faça você confessar!

- Velho? Eu? - disse Prodigal, espantado. Mas ao ver seu reflexo reluzindo na armadura dos soldados caiu em si! Sua aparência era realmente de alguém muito mais velho que ele mesmo conhecera.

- Claro! Você, seu velho louco! Por acaso te consideras um garoto? Esse é de fato um velho doido, não percamos tempo com ele, homens, sigamos as marcas que levam de volta para o Bosque Sem Fim.

Quando os soldados, após revistarem a casa de Serena e nada encontrarem nem mesmo a própria, partiram a galope. E o “velho moço”, sem ver sinais de Serena, pegou a velha garrafa, em seu poder e tomou um longo gole pra matar a secura que se fez dentro dele. Em seguida, continuou deitado ao chão por alguns momentos, recuperando-se do incrível cansaço que sobre ele pairou! Quando de repente um soldado retornou para averiguar a situação e supreendeu-se com o que viu.

- Ei, garoto! Onde está o velho louco que acabamos de deixar aqui? É seu parente?

Numa incrível rapidez de raciocínio, o escudeiro disse que sim, que era seu pai, e que tinha também entrado no Bosque e deveria estar perdido, pois de fato era um louco.

- Você é muito parecido com ele mesmo! Incrível semelhança, apesar da diferença de idade. E dito isso, o soldado de espada em punho virou-se e desapareceu em seguida dentro do Bosque...

Sem Serena, que desaparecera por encanto, e com a noite já cobrindo aquele local, Prodigal passou a entender melhor a magia d' O Lago Azul Profundo, que o fazia jovem próximo, e velho quando distante. Sorte a sua que ainda tinha mais alguns goles d'água da misteriosa garrafa, que armazenou por muito tempo o papiro contendo o Livro do Destino, que estava agora guardado no interior da armadura... O homem, despido dela era frágil; dentro dela sua alma era dura, sua coragem imensa, não tinha limites para o seu destemor.

O grande vidro e a pequena vida


Serena vivia solitária naquele local, em que o tempo parecia estar contido em uma imensa bola de cristal, como que prisioneira da própria vida, até a chegada de Prodigal... Quando o jovem ali chegou, levemente envelhecido, desde que se afastara do lago azul profundo, o sol intenso viajara com ele, por entre as árvores do bosque, até subir ao meio do céu... A visão do cavaleiro pelos aldeões, durante aquela jornada, criou o mito de sua imortalidade, já que cada escudeiro sempre assumia as vestes de seu senhor, quando de sua morte. Assim, a fama do Dragão Negro correu por toda região, junto com sua andança até chegar ao outro lado do bosque Sem Fim. Ali, sentira a sensação de que deveria ficar algum tempo mais, antes de seguir adiante. Precisava descansar, sentia muita fome e solidão.

Serena observava com receio aquele desconhecido. Tudo que a jovem aprendera na vida ─ e todos os segredos para sobreviver num mundo de estranhos ─, trazia consigo no Livro dos Desejos (ali estavam contidas também suas receitas mágicas). Tudo que sabia aprendera com a sua mãe, que passara o segredo recebido de sua avó, e assim por diante. Serena compilou no livro aquelas receitas de vida, fruto de um conhecimento milenar, restrito às mulheres do clã, pois cabia aos homens apenas guerrear e procriar. Estes eram céticos quanto aos encantos das mulheres e seus manjares. Satisfaziam-se apenas em suprir seus instintos, encher a barriga, e depois ruminar, virados pro lado... Não notavam que os pratos fortaleciam seus braços e pernas a cada véspera de batalha. Viviam como ursos, com muita força bruta e nada mais.

Naqueles tempos sombrios, as mulheres acompanhavam as fases da lua, e seus ciclos de 28 dias... Aos 16 anos de vida eram mães e aos 32, avós. E a cada mudança da Lua Prateada no céu cinzento, de minguante para crescente, de cheia para nova, algo acontecia no local onde elas estavam, tendo que partir ou se esconder até o efeito passar... Aquelas mulheres possuíam uma língua secreta, e o que falavam nenhum homem entendia. Tudo sempre subentendido, nas entrelinhas do tempo, nos olhares sem que a boca se movimentasse. Mas os “ursos”, “não queriam dar o braço a torcer”, nem confessar que não entendiam suas esposas, irmãs, filhas... Os guerreiros sabiam apenas manejar com destreza escudo e espada, mas o coração parecia de chumbo fundido. Exceto um deles, que não era daquele reino, e que fora o fiel escudeiro de um cavaleiro, herdando de seu Senhor e Mestre, além dos trajes, o próprio nome, já que tinha incrível semelhança com o nobre, que lhe criara como um pai. A convivência os deixara parecidos demais... O menino do lago não conhecia o verdadeiro pai e fora criado por duas mulheres, antes de seguir os passos de Lord Drago: Sua mãe Vida (que morrera de desgosto, sem contar o nome de seu progenitor) e sua tia Alma (que enlouquecera, também guardando pra si o perverso segredo).

Ao passar a usar roupas e nome do seu Senhor, depois de sua morte, o jovem escudeiro, sem querer, criou naquele reino a lenda do Cavaleiro Imortal, que jamais envelhecia, e que vivia de léguas em léguas a lutar por causas perdidas. Os soldados do reino, que o viram tombar na noite anterior, diante do castelo de Messiter, não encontraram seus restos mortais. A lenda assim foi tomando novo corpo...

Um dia, Prodigal sabia-o bem ─ travestido de Lord Drago e ainda sem escudeiro ─, teria que ir às redondezas do castelo, pois lá dizia o Livro do Destino, em seu poder, vivia a bela princesa Cristal, que possuía o Livro dos Sonhos. Lord Drago tinha deixado pistas de que cabia a Irmandade do Vento zelar pela preservação desse e doutros livros mágicos (Do Destino; Dos Dias...), contra a ânsia de poder da Ordem do Tempo e do Colecionador.

Quando o rapaz contornou o estranho rio que margeava o ainda mais estranho bosque, trazido pelo aroma desconhecido e sedutor, mal sabia que fora conduzido ali pelo perfume do tortei encantado. Estava ele diante da pequena casa com a janela aberta e um prato a esfriar, quando uma silhueta em seu interior parecia encará-lo com temor. Um estrondo vindo do nada, amedrontou a ambos. Logo, Prodigal percebera que era nada mais nada menos que seu estômago roncando de fome...

Serena segurava nas mãos um cajado. O cavaleiro pensou no início ser alucinação, tal a beleza da mulher, que aparentava se aproximar dos dezesseis anos, e que era tida como bruxa para uns e a fada para outros. Santo de casa realmente não fazia milagres naquele local. Mas para ele, um Cavaleiro do Vento, aquela imagem saída das sombras era mais do que uma Aparição. De imediato sentiu o peito ser transpassado como se por uma espada mágica. A mulher, que pressentia às coisas e tinha curiosas visões, sonhara na noite anterior com um escudo reluzente em forma de lua prateada, com a misteriosa inscrição Nessun Dorma...

O tempo que se arrastará até aquele local, de repente voou que nem um falcão negro atrás de uma pomba branca no céu azul profundo. Um vácuo cobriu a região e o silêncio pousou entre os dois, além de densas nuvens. Serena vendo o olhar aflito do cavaleiro, largou o cajado, oferecendo um pedaço de seu manjar ao faminto, que por conta dessa gentileza também se desarmou. Antes que a noite de Lua Nova se aproximasse, tanto Serena como Prodigal seriam reféns do olhar um do outro. E não dormiriam com medo de ao acordar tudo não passasse de um sonho, como o tortei encantado...

O tortei encantado


Assam a massa... Assim era o último verso em forma de palíndromo de um novo e enigmático poema que trouxe o novo cavaleiro do dragão negro até o outro lado do bosque Sem Fim, contornando às densas árvores, algumas com estranhas formas de troncos que pareciam gente...

Próximo ao Reino de estranhos, havia uma aldeia de um povo novo, onde morava solitária uma mulher sem igual, chamada Serena, filha de Ísis, e tida pelos vizinhos como curandeira, e pelos sacerdotes mais conservadores, como bruxa, tal o encantamento que sua culinária, seus chás e seus olhos radiantes proporcionavam a quem merecesse tal distinção.

Remanescente da misteriosa seita da Lua Prateada, que quatro vezes por mês se reuniam, vindo de todas as partes daquele reino e d’outros mais distantes, com seus capotes pretos, cobrindo corpos e rostos, e cujas integrantes possuíam mil encantos e receitas mágicas, passadas de mãe para filha, de geração em geração. Para aquela seita, o universo fora gerado por uma Deusa, que também nasceu de um útero imenso e universal. Os últimos relatos que Serena tinha, da memória familiar, remontavam à construção das primeiras pirâmides no Deserto dos Sonhos, contudo sabia que o início de tudo que conhecia vagava trêmulo entre a mitologia e a história mitificada. Todo o conhecimento que tinha veio de relatos orais, de tempos em tempos, quando a filha menor, precisava atravessar o Mar Vermelho interior...

Daquele dia em diante, sob o brilho da Lua Prateada, imenso móbile bailando no céu, a mãe passava à filha, já mulher, suas receitas guardadas a sete chaves, do segredo do bem viver, quando começava a ensinar os primeiros ingredientes secretos e o seu modo de preparo, ainda na tenra idade. Um deles era curioso ritual do Tortei Encantado, que necessitava de uma moranga nova, espécie de abóbora, que deveria ser colhida sempre na noite de Lua Crescente, para que a receita e o encantamento prosperassem ao redor de seu mundo exterior... Moranga que necessitava ser cozida e esmagada, passada em farinha de rosca até dar a tal “liga”. Em seguida, colocado o açúcar, precisava de uma pitada de sal e noz moscada ao gosto. Para a feitura da massa era preciso ovos e farinha. Depois, uma galinha, ainda viva... E, a seguir, misturando a carne branca desfiada com tomate, cebola, pimentão e outras coisas mais, dependendo da ocasião. Por fim, levando tudo ao fogo brando, mexendo e remexendo até ficar bom...

O tempo e o espaço tornaram mãe e filha distantes, mas graças a essas receitas, as duas permaneciam com a mesma “liga”, o que tornava a farinha em massa saborosa. Ao fazer a receita familiar, conseguiam se comunicar e pressentir o perigo que uma passava a outra, e pela receita, equilibravam o ambiente familiar e a saudade, palavra que não existia em seu vocabulário, até as duas se separarem. Viviam perseguidas, de aldeia em aldeia, pois a população não entendia seus poderes extraídos da lua e seu jeito de ser tão natural. Imaginem só! Em tempos remotos, em que todos seguiam a risca seus papéis, portando-se como personagens de um jogo, mulher ter opinião e escolher o que deveria fazer! Uma blasfêmia para os sacerdotes, uma afronta aos reis, um escândalo até mesmo para as nobres e submissas mulheres da Corte, sombras pálidas de seus Senhores. Estas eram quase escravas, embora não usassem ferros, nem fossem chicoteadas, mas viviam presas a própria masmorra interior, como se numa bola de cristal imensa, feito as galinhas, que retidas por um simples círculo de giz, jamais atravessavam sua invisível prisão...

Serena era diferente de todas, e isso chocava a homens e mulheres da região, que não entendiam seu jeito de ser livre como a Lua Cheia no céu, por isso vivia reclusa, como medo de perseguição.

Dizia antiga lenda ─ passada de pai para filho ─, que aquele que provasse do tortei encantado, em noite de Lua Nova, tornava-se um novo homem, e que se tivesse o azar de ser em Lua Minguante, minguariam todos os seus sonhos e bens. Porém, quem experimentava do tortei encantado, poderia até esquecer quem era, mas jamais esqueceria aquele prato, seu tempero e sua criadora. Notícias de outros reinos davam conta de que alguns ficavam destemperados antes da hora, o que só lhes dava dissabor. Mas aos que tinham a paciência de esperar que o tortei ficasse no ponto, e que jamais contavam a alguém o segredo da receita mágica, a esse nobre cavaleiro poderia acontecer uma Revelação... Naquele tempo calamitoso, as mulheres criavam receitas de bem viver, e os homens histórias de faz-de-conta entre seus pares...

Quando Prodigal, montado em seu cavalo baio, chegou ao outro lado do bosque, encontrou uma pequena casa. Serena tinha terminado de assar a massa encantada, colocando-a na janela de sua casa rústica para esfriar. O sol se encontrava no meio do céu e os cabelos ruivos, cor de fogo, daquela mulher despertaram no cavaleiro chama crescente, sem igual...

O palíndromo e a dupla face


O menino do lago levantou-se do chão com a garrafa contendo o Livro do Destino , fazendo um barulho metálico em seu interior. Ali dentro, estavam três dados de metal (um de ouro, outro de prata e um de bronze), para serem usados junto ao livro. Com aquele pequeno tesouro em mãos, dirigiu-se ao local em que Insônia tinha guardado as coisas de Lord Drago. Entre sete árvores, a sete palmos de terra adentro estava o corpo do cavaleiro do dragão negro. A sete passadas largas ao Norte da sepultura estavam também enterradas a sete palmos de chão toda a vestimenta e armas do guerreiro morto.

Pelo caminho, Prodigal notara que quanto mais se afastava do lago sua pele parecia enrugar ao calor do Sol, e sua mente a esquecer das formas da bela mulher que mergulhara com ele no fundo do lago Azul Profundo. Se de dia a esquecia, a noite voltaria a lembrá-la, encontrá-la? — perguntou a si mesmo.

Depois de lavar a malha, o colete, o elmo, o escudo, a lança e a espada na beira do rio, viu o homem no reflexo da água o rosto de Drago refletido, ao invés do seu. Levou um susto! Se estava ainda sonolento, de todo acordou. Jogou mais água no rosto, e o semblante de menino do lago retornou a sua dupla face. Com a garrafa na mão, retirou o Livro do Destino e os três dados, para guardá-los, como seu Mestre o havia ensinado, num local que somente ele ou seu fiel escudeiro soubesse. Sem ainda ter um ajudante, preferiu correr o risco e ficar com o papiro dentro de sua roupa e os dados grudados no espaço que antes fora da pedra vermelha ─ conhecida como o Coração do Dragão ─, tendo um encaixe perfeito; vestindo em seguida a armadura completa para seguir viagem. Seu cavalo baio estava ali próximo, em uma árvore amarrado. O cavalo negro de seu amo tinha igualmente perecido com seu dono.

Quando o escudeiro, agora travestido de cavaleiro, empunhou firme no braço esquerdo o escudo com a inscrição Nessun Dorma (que ninguém durma) e na mão direita a espada reluzente de Lord Drago, pela primeira vez em eu poder, percebeu pela primeira vez nela curiosa inscrição, em letras diminutas. Palavras que estavam inscritas em um antigo relógio de sol, quando Drago iniciara o menino do lago, filho de Alma (a que se matara) e sobrinho de Vida (a que enlouquecera), em seus estudos de latim e arte da guerra:

- Transit umbra, sed lux permanet. (A sombra passa, mas a luz é duradoura).

Naquele instante, palavras, como flechas, saíram de sua boca, sem ele saber como:

- O meu reino sou eu mesmo e tem em mim a pedra fundamental.

O novo cavaleiro de si mesmo desconhecia muita coisa que o rodeava. Dentre elas que Insônia também conhecia o latim, pois fora a serviçal de um sacerdote atormentado por seus demônios interiores, que a perseguia sem sucesso às noites (quando ela por encanto desaparecia entre os corredores escuros do mosteiro), fazendo-o supliciar-se ao dia, até que a mulher do lago fugiu daquele local, para nunca mais voltar. O padre, todo de branco e repleto de ouro, tinha a alma em total escuridão. Mas foi um outro padre, todo de preto e em completa penúria, que a protegeu do outro, até indicar-lhe o bosque como o reduto onde as mulheres perseguidas pelo falso religioso, pudessem viver em paz. As que resistiam a ele, condenadas por bruxaria, e confessando a heresia, sob tortura, eram levadas à fogueira. Insônia, se não partisse dali, teria o mesmo destino cruel das outras. Contudo, mesmo longe, ela sempre estava por perto de quem precisava de ajuda, conhecendo todos os atalhos que levavam do mosteiro ao Bosque Sem Fim. Um lugar encantado que tinha tal nome, pois aquele que não soubesse andar pelas trilhas ─ como que preso num labirinto de árvores ─, jamais retornava de lá... Porém, existia uma misteriosa profecia que dizia que o bosque poderia perecer o dia em que os Gigantes de Um Olho Só viessem àquela terra visitar.

Prodigal, nada disso sabia, e ao consultar Livro do Destino, jogando os três dados de metal, somadas luas e estrelas neles, dava o número dezesseis, e no verso dezesseis do Livro do Destino haviam igualmente dezesseis versos enigmáticos em forma de palíndromos:

A porta rangia à ignara tropa.
A base do teto desaba.
Lá vou eu em meu eu oval.
A semana toda lemos: só melado tá na mesa.
Assim, a sopa só mereceremos após a missa.
E até o Papa poeta é.
E assim a missa é...
A torre da derrota.
Livre do poder vil.
O mito é ótimo.
Acata o danado... e o danado ataca!
O terrível é ele vir reto.
Reter e rever para prever e reter.
Soa como caos.
Sós: somos sós.
Assam a massa.

O lago azul profundo


Após enterrar o corpo de Drago, ao lado da mais frondosa árvore do bosque, e com a sua malha lavada e costurada por Insônia, cabia a Prodigal seguir a sina do cavaleiro do dragão negro, primeiramente achando o Livro do Destino (pelo seu senhor sempre escondido antes de cada batalha) e depois escolhendo um fiel escudeiro para que a sua jornada continuasse. Mas quem escolher, se ele estava sozinho naquele mundo de estranhos?

Sem dizer uma só palavra, Insônia - que não lia pensamentos, mas entendia os olhares das pessoas e seus sentimentos -, disse ao jovem:

- Tu primum exhibe te bonum, et sic quaere alterum similem tui. [Publílio Siro] (Primeiro mostra que és bom, e assim procura outro semelhante a ti). Tudo tem o seu devido tempo.

- Você poderia acompanhar-me nessa viagem, ser minha escudeira? – retrucou o jovem, em forma de pergunta a mulher, que fazendo uma pausa, disse:

- Tui cum sitiant, ne agros alienos riga.[Publílio Siro] (Enquanto os teus campos têm sede, não vás regar os alheios). Primeiro, precisas decifrar teu enigma interior, para depois partir em uma jornada. Precisas descobrir o livro da tua existência, antes de querer mudar o mundo... O teu mundo começa e termina em ti mesmo...

Prodigal então, relendo diversas vezes o enigmático poema deixado por Drago, percebeu que o cavaleiro deveria ter escondido o livro num local ermo, de difícil acesso, entre o sono e o sonho profundo, como falavam os versos... Se ao céu ele não poderia alcançar, ao sono profundo de um lago, quem sabe ele pudesse chegar. Se Drago se arrastara, ferido de morte, até a beira daquele lago Azul Profundo, provavelmente em seu leito fundo ele tenha sepultado o Livro do Destino, para que seu fiel escudeiro, quando preciso fosse, o achasse...

Depois de contar a Insônia seu intento, de ir ao fundo do lago, Prodigal escutou daquela espécie de deusa das águas, em forma de mulher de areia, uma curiosa sentença:

- Tracta ante factum, quia post factum sera retractatio est. [S.Bernardo, De Consideratione 4.11.1] (Examina antes de fazer, porque depois de feito é tardio o arrependimento). Se é isso que desejas, contigo estarei.

- Não há do que se arrepender, mulher. O único arrependimento é o de não viver a vida ao seu momento. Ajude-me a ir até o fundo do lago, do qual, parece-me que você sabe todos os segredos e encantos para guiar-me aos meus medos mais secretos... E eu te recompensarei com minha eterna lealdade.

- Tranquillas etiam naufragus horret aquas. [Ovídio, Ex Ponto 2.7.8] (O náufrago tem medo até das águas calmas). Mas enfrentar o medo é a maior prova de coragem!

- Entendo o que dizes, Insônia. Minha vida é um eterno naufrágio. Estou sempre à deriva. Não consigo ler a rosa-dos-ventos, e isso que sou agora um cavaleiro da Ordem do Vento. Mas se você vier comigo não estarei mais só.

- Tranquillo quilibet gubernator est. [Sêneca, Epistulae Morales 85.34] (Com mar calmo qualquer um é piloto). Aproveite, então, o lago sem ondas, pois quando for preciso adentrares ao mar revolto, precisarás estar pronto para enfrentar a tudo e a todos: dos golfinhos aos tubarões, e saber distinguir de longe, uns dos outros.

- Certamente. A vida é para os que sabem contornar o Cabo das Tormentas e descobrir um Novo Mundo, que dizem existir n’algum lugar distante ou em si mesmo. Então, auxilie-me a chegar ao fundo do lago e de lá trazer comigo são e salvo o Livro do Destino para que eu possa seguir em minha missão.

- Traditio nihil amplius transferre debet vel potest, ad eum qui accipit, quam est apud eum qui tradit. [Digesta 41.1.20] (A transmissão não deve nem pode transferir ao que recebe mais do que está com o que transmite). Mas fiques tranqüilo, acompanhar-te-ei os passos e as braçadas sempre, da mesma forma que a lua no céu segue aos homens pela noite funda...

E dito isso, a mão direita da mulher pegou a mão esquerda do impetuoso jovem, conduzindo-o apressadamente à beira do lago, antes do raiar do sol. O eclipse da lua estava por terminar quando eles mergulharam profundamente nas águas calmas, afundando num estado de quase sonho e sono fecundo, profundo, indo até o mais fundo de seus redemoinhos interiores. A água era doce, clara e morna como um sonho. Lá embaixo a paz reinava, bem diverso de à tona. Os dois sempre de mãos dadas foram se aprofundando no lago calmamente. Havia uma harmonia incrível entre ambos, a água fluía por seus poros, e o tempo não era percebido ao seu redor. Com a respiração presa, e o coração disparado, foram indo e indo mais fundo.

Mais adiante, quando Prodigal viu uma reluzente garrafa submersa, presa entre corais, pensou: eis o sinal! Insônia fez-lhe um gesto com a mão: vai! E o jovem abriu bem os braços e mergulhou mais fundo, ajoelhando-se em frente a misteriosa garrafa prateada. O que teria em seu interior? Seria o Livro do Destino, em forma de papiro enrolado? Teria algo mais. Estaria vazia ou seu conteúdo deteriorado? Mil e uma possibilidades lhe passaram pela mente, já não conseguindo mais prender a respiração... Fez muita força até que a garrafa desprendeu-se dos estranhos corais. Quase perdendo os sentidos, virou-se procurando Insônia para pedir-lhe ajuda, mas não a encontrou mais. A sua sereia havia desaparecido no lago azul profundo ou teria emergido na praia? Tomado de pânico, com medo de se afogar, voltou à tona, e lá não encontrou mais sequer as pegadas na areia daquela misteriosa mulher. Desaparecera no ar ou na água? O vento teria apagado sua visita? Lembrou-se apenas de suas últimas palavras, quando Insônia deixou subentendido que estaria ao seu lado ao anoitecer... Sem fôlego, com a garrafa nas mãos, caiu exausto à beira do lago, em um sono profundo, em busca de respostas para as perguntas cada vez mais complexas...

Em sonho, reencontrou Insônia, sempre bela, com vestes reluzentes, que lhe dissera pausadamente:

- Tu si hic sis, aliter sentias. [Terêncio, Andria 310] (Se estivesses no meu lugar, pensarias diferente).

Naquele instante, Prodigal acordou sobressaltado, sem saber quanto tempo passara ─ afinal, naquele Reino de estranhos o tempo parecia como que aprisionado em uma imensa bola de cristal...

Semper et ubique


Sempre e em toda parte, assim Lord Drago, integrante da Irmandade do Vento, referia-se ao Colecionador, o poderoso guardião da Ordem do Tempo, que nem os seus iniciados nem os mais infiltrados naquela sociedade secreta conheciam a verdadeira identidade... A única coisa que o cavaleiro do dragão negro sabia e tinha repassado a Prodigal era o fato de que, em caso de morte do cavaleiro, caberia ao fiel escudeiro assumir sua armadura, escudo e espada, carregando consigo o Livro do Destino, para tentar protegê-lo, ainda que com a própria vida, da cobiça do Colecionador, que desejava possuir todos os livros do mundo e dominar com isso todo o conhecimento humano em sua Biblioteca Sepulcral...

Lord Drago sabia que naquele Reino de estranhos existiam outros dois livros mágicos (dos Sonhos e dos Dias), que juntamente com o seu, o do Destino, continham em si a chave para enfrentar o temível Colecionador. Temendo por sua ruína, prevista nos dados e no livro, Drago guardara aquele oráculo num local enigmático que somente seu fiel escudeiro, se viesse a lembrar de seus ensinamentos, poderia encontrar...

Na beira do lago Azul Profundo, Prodigal pediu a Insônia que o ajudasse a retirar a pesada armadura de seu amo e Senhor. A mulher, sem dizer uma só palavra, acatou seu pedido. Os dois, com muita dificuldade, abriram uma a uma as fivelas daquela quase inexpugnável malha. A pedra preciosa, chamada o coração do dragão, ainda vertia sangue. Um pequeno mar vermelho se formou ao redor do imenso corpo sem vida. Após alguns minutos, o cadáver de Drago estava despido. Insônia aproveitou a beira do lago para lavar sua ferida.

Enquanto Prodigal desafivelava a malha nem percebera que a bela mulher tinha adentrado em um pequeno bosque ali próximo e de lá trazido ervas medicinais para fazer ungüento e cicatrizar a profunda ferida.

- Para que tanto cuidado com um corpo sem vida?, perguntou o jovem à moça dedicada.

- Semper et ubique unum ius (Sempre e em toda parte um único direito).

Envergonhado, conhecendo bem aquela língua ensinada pelo seu mestre, o escudeiro percebeu que teria muito que aprender com a vida e também com aquela mulher se quisesse se tornar um honrado cavaleiro. Tentando se redimir, trouxe a catapulta que arremessava os dois escudos de fogo, para poder carregar para dentro do bosque o corpo de seu amo e Senhor. Precisou de mais duas viradas de areia da ampulheta para que ele e a mulher cavassem uma cova funda, ao lado de uma imensa árvore, para em seu interior depositar o corpo de Drago.

Insônia trazia na cintura uma pequena bolsa enrolada, de onde tirou agulha e linha para costurar a malha do cavaleiro do dragão negro. Mexendo em seu interior, encontrou um pedaço de pergaminho, todo amassado, ensangüentado... Quando Prodigal se aproximou, a mulher alcançou-lhe o pedaço de papel, que continha um misterioso poema escrito, ao que tudo indicava, com o próprio sangue de Drago. Uma confissão? Um segredo? Que nada, quem sabe alguma mensagem cifrada indicando onde se encontrava O Livro do Destino, pensou o menino do lago tentando decifrar uma mensagem dentro de outra mais imbricada.

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O duplo eu e a jornada interior


Homo simplex in vitalitate, duplex in humanitate – eis o lema dos cavaleiros da Irmandade do Vento, lembrado por Prodigal ─ o menino do lago e o fiel escudeiro ─, diante do corpo sem vida de Lord Drago, seu amo e Senhor.

Nunca tivera acesso a todos os segredos de Drago, mas precisaria descobrir o paradeiro d’O Livro do Destino, para poder seguir a sina de seu portador: ser o cavaleiro do dragão negro e enfrentar os integrantes da Ordem do Tempo, que tudo sabem, tudo vêem, tudo controlam, catalogam, taxam... Enquanto a Irmandade do Vento se preocupa em descobrir o sentido da vida, contido na Árvore dos Dias, os membros da Ordem do Tempo, preocupam-se com o acúmulo de bens materiais; da reunião de tudo que é tipo de documento, texto, para confinar na sua própria Biblioteca Universal e sua visão cíclica, ciclópica... Ambos os grupos têm em um livro sua fonte de vida. Os primeiros, o do Destino; os outros, o Livro das Horas, pois tudo é calculado com precisão matemática...

Os cavaleiros do Vento são em sua maior parte desapegados dos bens, das terras, do materialismo vigente; porém, os do Tempo, tudo querem demarcar, definir, indexar, anexar, se apropriar... No Reino de estranhos ─ uma cidade-estado como outras tantas em sua época ─, oitenta por cento das terras pertencem a menos de vinte por cento das famílias. Os feudos são imensos e o Tempo naqueles redutos, incrível e paradoxalmente, parece estar encerrado numa pequena bola de cristal, como que em eterno vácuo, silencioso, sem nada ou quase mudar. Até mesmo quando dá a falsa impressão de mudar, mantém-se quase que intacto. Naquele local, dinastias se formam e se mantém no poder com o aval da Plebe Rude. Há rumores sobre a lenda de um jovem, chamado Robin Rude, em um reino distante, que rouba dos ricos para dar aos pobres.

No reino de estranhos, o velho Kassim é um dos maiores proprietários de terras emersas e submersas da região até onde o olhar perde a visão; Agnus Dei, como é conhecido o guardião do Livro dos Sete Selos ou das Horas, outro que possui pequenos reinos dentro de um reino maior, que também está contido no interior doutro e assim sucessivamente; por fim, Don Borja, um jovem e valoroso concorrente dos demais...

Prodigal, que desconhecia seu passado, veio seguindo os passos firmes e fundos do cavalo de Drago por aquela terra de areias brancas, encontrando aquele corpo imenso e sem vida na beira do lago Azul Profundo. Sozinho por breves instantes que pareceram horas, dias, não teve forças suficientes para movimentar àquela pesada armadura. Somente quando a mulher das águas, chamada Insônia, submergiu de seu mergulho noturno, foi que tudo pareceu mudar. O tempo passou a cair na imensa ampulheta das horas, e uma chuva fina, misturada com o vento, deu a ele a fantasiosa impressão de chover areia sobre ambos...

Insônia trazia na mão um cantil cheio de água para reanimar Drago, mas este não estava mais ali, sua alma dura havia partido para o grande vale das sombras, que todos irão um dia visitar. A bela mulher, então, pôs a mão esquerda sobre o ombro direito de Prodigal, que ajoelhado próximo de seu Senhor, tentava a todo custo conter uma pequena cachoeira interior, querendo desaguar. O jovem dizia dezenas de vezes para si mesmo: Escudeiros não devem fazer isso! Insônia, ajoelhada também do seu lado, como que em oração, disse apenas: O caminho de um rio ninguém pode barrar, e se assim o fizer, terá sucesso passageiro, pois um dia, é a lei da natureza, irá tudo transbordar. Não fuja da natureza, seja você mesmo e não o seu Outro.

Aquelas palavras caíram dentro do poço fundo do escudeiro, fazendo o barulho de pedras mergulhando na água, e surgindo círculos concêntricos, um após o outro... O jovem virou-se para a mulher e perguntou seu nome. Insônia respondeu de imediato com outra pergunta: De que adiantam os nomes se as palavras não dão conta dos símbolos que as coisas encerram em seu interior? O Sol poderia ser chamado de moeda de ouro e a Lua de moeda de prata e mesmo assim não deixariam de ser o que são, não concordas? A beleza e a estranheza daquela moça do lago fizeram Prodigal não saber o que responder. Se tivesse em seu poder O Livro do Destino, quem sabe, teria a resposta para tudo na vida, da mesma forma que Lord Drago tinha em sua grande jornada interior... Pelo jeito, o menino do lago, com o encanto quebrado e aparentando quase a idade que deveria ter, aprenderia muito com a natureza, antes de vestir a escura armadura de seu Senhor...

Pequeno mundo pequeno


Todo estrangeiro é um estranho em uma terra que não é a sua. Terra mais estranha ainda para quem está chegando ou só de passagem. Se cada pessoa contém um pequeno universo interior, um Reino de estranhos carrega em si diversos mundos e pessoas, cada um com suas luzes e sombras, suas espadas e cruzes em uma longa jornada.

Prodigal – um estrangeiro que causa estranheza por onde passa -, diante do corpo sem vida de Lord Drago, seu amo e Senhor, não sentiu-se mais sozinho no mundo, pois a solidão tem sido a sua eterna namorada e companheira de viagem desde sempre. Naquele instante de dor um vácuo contornou seu corpo e o silêncio ficou agachado ao seu redor...

Mesmo Lord Drago tendo sido quem o criou, quando sua mãe Alma morrera sem ninguém esperar e sua tia Vida enlouqueceu sem explicação, aquele cavaleiro era para o fiel escudeiro uma grande incógnita e um quase desconhecido. Imenso, em sua armadura negra e alma dura de tanto guerrear pela bandeira dos outros, vivia o Lord envolto em mil e um segredos e medos. Frio e distante, às vezes, como uma muralha intransponível, noutras cândido e fraterno como um peão, o jovem pouco sabia da vida de seu Senhor, apenas que todo cavaleiro do dragão negro – e já foram muitos desde o início dos tempos – deveria zelar pela Irmandade do Vento; um grupo de cavaleiros que combatia a temível Ordem do Tempo... Entre as poucas coisas que Drago lhe contara estava o fato de que todo cavaleiro da Irmandade do Vento precisa, antes de sair em longa jornada, escolher o fiel escudeiro, para que ao morrer em batalha este o substitua e continue o mito de sua imortalidade. Era o pacto feito entre amo e servo, desde o início dos tempos da irmandade... Dessa forma o escudeiro era iniciado n'A grande verdade, sabendo que um dia O Livro do Destino teria que ser por ele guardado com a própria vida.

Prodigal sabia que Drago era o sétimo cavaleiro da irmandade do Vento, e que quando ele morresse deveria procurar um dos seis restantes, que conheciam cada um mais seis nomes de cavaleiros, e estes mais seis e assim por diante, na grande teia de aranha do brasão daquela comunidade secreta, que se reunia vez que outra num local remoto, para escrever enigmáticos poemas em forma de criptogramas, que só os integrantes d'A Grande Teia podiam entender... Os seis cavaleiros eram: Capablanca, Luminet, Morphy, Binet, Steinitz e Groot. Tinham outros, como Sessa, Philidor, Shannon, Damiano, Filguth, Polgar e Fine, mas esses o escudeiro - um iniciado nos segredos da Grande Biblioteca Universal, do mago Borges, como Lord Drago também se referia à irmandade do Vento - desconhecia a existência. A cada sete cavaleiros estes só conheciam um degrau além do que estavam, e o outro assim por diante, de forma a manter aquela pequena legião de guerreiros longe das perseguições da Ordem do Tempo, que como o próprio nome demonstrava, desejava controlar a qualquer custo o tempo e o vento... Esta ordem tinha como insígnia uma imensa ampulheta com um gigante de um olho só aprisionado em seu interior.

O escudeiro ajoelhado ao lado do corpo de Drago – pensando em quem deveria escolher para seu fiel escudeiro - viu uma pequena concha flutuando ao redor. Ao pegá-la com a mão esquerda e levá-la ao ouvido, por conta de um estranho ruído, descobriu que a tal concha parecia conter em seu interior o som de uma diminuta gruta escura e funda em que sua mãe Alma dizia que seu verdadeiro pai Sem Nome tinha se perdido para sempre, num pequeno labirinto construído por ele mesmo e que de lá jamais se encontrara tampouco retornaria ao mundo dos vivos... Se aquela concha podia carregar dentro de si um pequeno pedaço de mar, Prodigal passou a acreditar piamente que aquele Reino de estranhos poderia estar encerrado dentro de uma pequena bola de cristal, como que se o particular pudesse conter em si o universal...

O menino do lago


No Azul Profundo, a alma do cavaleiro pouco a pouco foi mergulhando...

Na beira do lago interior, o mundo começou a ficar gelado demais, espelhado naquela vida sem sentido. Dentro do Azul Profundo havia um sono igualmente íntimo, intenso, atroz... Naquelas águas frias, o corpo daquele cavaleiro imenso boiava num mar celestial...

Próximo ao bosque, o escudeiro do Dragão Negro esperava que aquela escuridão total cessasse para que ele pudesse reencontrar seu amo e Senhor. Criado por Lord Drago, o jovem Prodigal nunca conhecera seus verdadeiros pais. Desde menino fora ensinado a ser um leal servo do cavaleiro imortal. Seu verdadeiro nome desconhecia. Prodigal era um nome de guerra, como outro qualquer. Seu dever era sempre manter a chama dos dois escudos no céu, arremessados pela catapulta secreta, para que os valentes de qualquer reino temessem a chegada de Lord Drago.

Era noite dupla, no tempo e no espaço. Noite dupla nas horas e no céu. O eclipse era sempre considerado um mau presságio para os homens da realeza e também da plebe rude. Mas ele, que fora educado pelo cavaleiro do dragão negro, conhecia algumas das diversas coisas entre o céu e a terra, a partir das leituras feitas por Drago de um misterioso livro, como se fosse um oráculo: O Livro do Destino. Encontrado na tumba de uma múmia, o manuscrito muito antigo continha algumas perguntas e possíveis respostas. Seu uso dependia do bom jogo dos três dados mágicos que acompanhavam o texto milenar. Ao pensar com força em uma pergunta ou desejo, deveria o leitor jogar por sete vezes tais cubos mágicos, anotando seus resultados em uma árvore próxima, na areia, em qualquer lugar. Para cada combinação de arremesso de dados, se fosse par representava um sol, se fosse ímpar uma lua.

Quando seu Senhor jogou pela última vez os dados mágicos, a resposta à sua pergunta secreta teve o resultado de três sóis e quatro luas... A visão do semblante de Lord Drago, após ouvir do oráculo seu destino impressionou muito Prodigal. Nesse instante tinham passados exatos três sóis e três luas no céu. A quarta lua foi justamente a noite dupla encobrindo o Reino de estranhos de um jeito sem igual...

O jovem então, temendo pelo destino do cavaleiro, fez que seu cavalo e a montaria reserva de seu Senhor puxassem a catapulta até as margens de um estranho lago, formado de quando em vez pela força das águas de uma misteriosa Nuvem Passageira que cobre o céu do Reino de estranhos, toda vez que naquele curioso local há a programação de alguma festividade. Toda vez que tais festas religiosas ou pagãs acontecem por ali, cães e lobos surgem do nada, entre as pessoas, trazendo mau agouro aos habitantes da região...

Prodigal, na escuridão daquele tempo, foi então seguindo a margem do lago interior, vendo ao longe o brilho de um pequeno farol. Quando se aproximou da luminosidade, tratava-se somente de uma pequena tocha, cravada no solo, enquanto uma mulher de beleza rara, algo sobrenatural, emergia das águas, com seu cantil cheio, caminhando em direção ao corpo desfalecido de seu Senhor. Reconheceu-o, apesar da escuridão, por conta de uma pedra vermelha em seu peito, o famoso diamante Coração do Dragão, que o cavaleiro negro ostentava com orgulho e bravura a cada batalha vencida.

Insônia era o nome dado a mulher que trazia em seu cantil a água das profundezas do lago, para tentar salvar o guerreiro ferido de morte de seu Destino atroz.

Prodigal percebeu as pernas alvejadas de Lord Drago, mas o que de fato o matou foi um pequeno e afiado dardo, cravado bem fundo no coração do dragão. O jovem, ao primeiro instante não reconheceu a mulher, mas esta lembrou-se do menino do lago no exato segundo que o viu. Alguém por quem ela tinha grande afeição, diversos sóis e luas atrás, quando ambos eram muito jovens. Insônia - que quando menina desconhecia seus poderes, herdados das mulheres dos bosques - pediu num passado distante, quando da primeira vez que conheceu o menino, que este jamais envelhecesse até que ela pudesse reencontrá-lo. Este dia, na lei do eterno retorno chegou, e era para ela hoje, agora, já... Aquele pacto com as águas estava cumprido, e de agora em diante a juventude de Prodigal não seria mais a mesma... De volta à fonte da juventude, o jovem que jamais envelhecia teria que guardar em seu cantil muita água daquele lago se não quisesse envelhecer de uma vez só todo o tempo que lhe fora poupado pelo próprio tempo, por conta da afeição, do encanto e do encantamento daquela bela mulher...

Quando o jovem pisou de novo no lago, sem saber, quebrara o encanto do tempo. Mas outro encanto entre ele e Insônia mal estava para começar... Nenhum dos dois dissera uma palavra sequer. Nos olhos de cada um aquela sensação de déjá vu estava impregnada no ar, em seu entorno a bailar... Entre os dois, apenas o lago e o corpo sem vida de Lord Drago. A volta gradual do brilho da Lua trouxe de novo a todos os habitantes do Reino de estranhos o falso encantamento, e a certeza a Prodigal e Insônia de que tanto o real como o imaginário só o lago podia conceder ou retirar, velar ou desvendar...

O cavaleiro do dragão negro


Luzes e sombras se digladiavam naquele reino de estranhos. No céu duas luas, em formação de móbile, apareciam e se escondiam entre nuvens espessas, enquanto dois escudos de fogo sobrevoavam o castelo sem emitir som. O disco lunar duplo era fruto do eclipse que se formara entre o céu e a terra... A Lua Nova que se tornava Crescente, de repente, fora eclipsada por outro corpo celeste de maior proporção. E o que acontecia no céu, parecia ter paralelo na terra, entre dois corpos humanos se procurando nas trevas daquele tempo perdido, dentro de um bosque encantado, onde diversas mulheres da misteriosa seita da Lua Prateada dançavam descalças em torno de uma chama que parecia vir, ora do interior da terra, ora do interior delas mesmas. Eram todas consideradas “bruxas” pelos soldados do castelo de Messiter, desconhecedores de suas identidades, e que do alto de uma das torres ficavam entre extasiados e perplexos com aquele estranho ritual. Havia a crendice de que toda noite de Lua Nova era propícia para o surgimento de dragões que podiam engolir a própria lua e toda luz do céu. Diziam que era um período para o surgimento de monstros e desaparecimento de gentes.

Toda vez que ocorria um eclipse lunar, aquele reino se dividia em dois mundos diversos: o dos que eram da luz e dos que continuavam nas trevas. Como peças de um tabuleiro mágico, haviam peões, cavalos, torres, bispos, reis e rainhas de lados opostos, em um jogo de claros-escuros, não em relação às cores de pele ou de roupas, mas de almas, que num futuro não muito distante levariam aquele reino de estranhos ao confronto final entre o povo das trevas e o das luzes... Entre espadas e cruzes...

Quando da Lua Nova, uma região não iluminada do disco lunar, não visível ao olho humano, fazia naquele reino que as pessoas mostrassem o seu lado oculto, muitos deles prisioneiros de sonhos e pesadelos, segredos e medos. Durante trinta dias quatro luas se revezavam no céu, cada uma incidindo sobre as pessoas, principalmente as mulheres e, em especial, às da Lua Prateada, que durante quatro noites de mudanças celestes se reuniam para cultuar e cultivar curiosas tradições e ritos de passagem.

Foi naquela noite em que os dois escudos de fogo cruzaram o céu sobre as torres do castelo, desaparecendo por entre densas árvores do bosque, que surgiu próximo a ponte elevadiça um cavaleiro montado em um corcel escuro, ambos vestidos de preto, estando o cavaleiro com espada brilhante em punho na mão direita enquanto que no braço esquerdo um escudo trazia estampado um dragão negro cuspindo fogo pelas ventas e em torno dele a misteriosa inscrição Nessun Dorma. A guarnição do castelo, supersticiosa e petrificada de medo ficou de prontidão... Ninguém saiu das muralhas para interpelar o misterioso e imenso homem, que o elmo não permitia enxergar os olhos.

Quando o eclipse cobriu enfim toda a Lua no céu, na terra dos homens, a escuridão foi total, e os soldados apavorados começaram a cuspir flechas e mais flechas em direção ao Dragão Negro, como fora batizado por um dos jovens arqueiros. A noite era serena, mas uma chuva oblíqua de setas desceu rumo ao chão. E o cavaleiro do dragão no escudo, apesar de tentar proteger os órgãos vitais, teve as pernas alvejadas, tombando junto com o cavalo... O animal, sem a mesma proteção, morreu na hora. O cavaleiro arrastou-se pela terra, perdendo muito sangue por conta dos ferimentos em ambas as pernas. Seu fiel escudeiro, um jovem criado seu, que sempre acionava a catapulta, projetando dois escudos flamejantes ao céu, para anunciar sua chegada e inibir a coragem de seus adversários, estava muito longe do local, e só chegaria ali tarde demais...
Então, o cavaleiro de um reino distante, arrastou-se até onde suas forças levaram seu corpanzil, deixando um rastro vermelho em direção à beira daquele grande rio que era mar, e que circundava todo o reino de estranhos. Ali, do outro lado da margem do rio quase imóvel, viu a silhueta de uma bela mulher, chamada Insônia, vinda das águas, emergindo de seu banho noturno renovador. Pensou no início tratar-se de alucinação, tal a beleza morena da mulher, que era tida como bruxa por uns e a fada por outros. Tardiamente e pela primeira vez na vida, ele o cavaleiro imbatível, que sempre curou todas as feridas de batalhas, e tinha fama de invencível, sentiu de imediato o peito ser traspassado como que por uma espada mágica, diante da aparição da belíssima mulher que lhe tiraria o desejo de dormir se os ferimentos não fossem um tormento profundo. Antes de desfalecer na dor e mergulhar no torpor, ficou com a dúvida atroz: Seria aquilo de fato uma visão ou pura e mortal alucinação? E pela derradeira vez, lavou o rosto suado no espelho das águas plácidas, que por segundos refletiram seu rosto de quando jovem. Em seguida o eclipse interno carregou sua alma para o grande vale das sombras e do sono...

Os olhos de Cristal


Sentada em sua cama, a princesa Cristal põe a ditar para seu escriba O Livro dos Sonhos, em que retratava ora em prosa, ora em verso as imagens que via a cada noite mal dormida. Curiosamente eram formas que ela não compreendia, pois Cristal fora batizada com esse nome por conta da falsa imagem que deu ao seu pai, o rei Palermo, quando a viu nascer. Encantado com a beleza da menina, de cabelos loiros quase brancos, e olhos igualmente claros como o cristal, o pai orgulhoso não pensou duas vezes em dar-lhe esse nome.

O rei severo, com o tempo passou a perceber que algo estava errado com os olhos da menina, que não encaravam o seu rosto barbudo, quando este a pegava no colo para brincar. Intrigado, um dia colocou a filha diante da janela de seu quarto, numa manhã de sol forte. E ai descobriu que a princesa, tão bela, não possuía visão. Cega de nascença, naquele reino jamais poderia enxergar o que se passava a sua volta. O que seria lamentável para uma nobre.

Então, o rei confinou a menina em uma das torres do castelo, como que presa numa bolha, até chegar aos 16 anos, quando passou a ser cortejada por príncipes de reinos distantes, que a viam apenas de longe, maravilhados por sua beleza, mas intrigados por ela nunca olhar nos olhos de alguém... Ninguém naquele reino sabia de sua cegueira, exceto o rei, a rainha e alguns serviçais...

A maioria dos pretendentes, diante do insucesso de conhecê-la de frente, desistia do pleito e retornava para casa, e os que insistiam junto ao rei para conhecer Cristal pessoalmente, só podiam assim o fazer mediante uma condição: jamais encarar seu rosto, antes do casamento. Ninguém aceitava tal proposta e todos saiam indignados com a crueldade do rei Palermo. Dois longos anos se passaram... Outros pretendentes vieram, e todos tiveram o mesmo destino...

A rainha de nome Esperança, em decorrência do destino de sua filha e a truculência do rei, passou a ser chamada pelos seus súditos de Tristeza, vivendo confinada na outra torre, aguardando o dia que os sonhos da filha se tornassem realidade naquele reino de estranhos. Alguém que Cristal via em sonho todas as noites, e que viria libertá-las daquela prisão. A princesa tinha o dom de, apesar de não enxergar nada, conhecer as pessoas ao seu redor apenas pelo tom de voz e o jeito de caminhar. Imaginava seus traços, e quase sempre acertava na índole (boa ou má) de cada um, sabendo separar o joio do trigo, coisa que o rei Palermo, sempre rodeado de conselheiros, não possuía tal visão...

Por ironia do destino, naquele reino de estranhos, existia um bom homem, com medonha aparência, que encantava a todos com seus versos livres, mas que afugentava a todos que o conheciam pessoalmente. Um homem sem família, que vivia encapuzado, com um olho vazado por um duelo quando jovem, e que naqueles tempos, só saia de seu quarto, no interior do castelo, ao anoitecer, para não encontrar ninguém. Predileto do rei Palermo por conta de seus versos encarados como profecias, o Poeta vivia sozinho, recolhido em seu mundo interior. E nele tinha devaneios por conta do amor que depositava na princesa Cristal, que toda noite quando vinha à janela, emitia um misterioso brilho nos olhos, fazendo o Poeta se esconder entre as árvores, com medo de ser visto ali na espreita. Quando voltava para seu quarto, um pequeno poema ia nascendo em seu interior, na mesma medida que a princesa quando deitava, passava a sonhar com o homem que escrevia versos tão belos, quase profecias em que ela queria a todo custo acreditar...

O livro dos Dias


Havia naquele reino de estranhos um livro misterioso, escrito por um poeta, tido por nobres e plebeus com um vidente, a frente de seu tempo, pela curiosa coincidência entre o que escrevia e o que acontecia ao seu redor. Seus versos eram tidos como previsões, profecias. Sua escrita enigmática seria num futuro distante tida como reveladora. Estudiosos se debruçariam sobre ela como se a mesma tivesse um código secreto, que ao ser desvendado poderia conter segredos do próprio tempo futuro.

No entanto, o poeta tinha inspirações, fruto não de visões mas de emoções que sentia sobre o próprio reino e seus habitantes aprisionados pelo tempo. Escrevia em couro seco de cabra com pena de ganso e corante de plantas. Escrevia ora a noite, ora de dia, sobre o futuro do presente, sobre o presente do futuro e sobre o futuro do futuro. Tempos verbais e não siderais. Não tinha a pretensão de ser profeta, apenas um poeta. As palavras dançavam em sua mente, mas não era vidente...

O bispo temia sua escrita, ameaçava-o seguidamente com a fogueira. Mas o poeta dizia que seus versos eram para o rei, que vaidoso, o tinha como seu artista preferido, dando-lhe proteção e abrigo dentro das muralhas do castelo.

O poeta reunia diversos poemas, que batizara de O Livro dos Dias, fruto de suas vivências, observações e opiniões sobre o reino e seus habitantes... Ainda não tinham inventado a imprensa. A Bíblia ainda era copiada página por página por padres copistas. Toda vez que tinha uma inspiração, recolhia-se aos seus aposentos humildes, para ali não esquecer as palavras que o vento lhe soprava nos ouvidos...

Eu tive um sonho
em que subia numa pequena árvore,
a pequena árvore do sonhos
e de lá do alto, tudo era encantado,
como um quarto crescente,
onde o mundo pequeno tornava-se imenso...
As palavras caminhavam sobre a linha do horizonte...
as gotas da chuva tornavam-se puro cristal,
o mal não tinha morada e a amada,
vivia enclausurada em seu quadrante solar...
E a morte vivia longe, lá no fim do mundo,
Porém podia estar a qualquer momento
Bem mais próxima do que pensamos;
Ao lado da ponte, onde mora o coração valente...

Terminados os versos, o poeta adormeceu em seu catre. Na manhã seguinte, foi acordado às pressas pelo chefe da guarda, que o conduziu a presença do rei. O poeta carregou consigo os versos que tinha escrito no dia anterior, para dar de presente ao rei, inspirado na princesa Cristal, batizada com esse nome por conta do brilho de seus olhos.

O rei abatido, inconsolável, mortificado contou ao poeta sobre a morte de seu filho preferido, o príncipe herdeiro, próximo à ponte elevadiça, quando voltava de uma caçada onde fora a caça ao invés do caçador, haja vista ter seu peito traspassado por uma flecha mortal... O rei vendo as mãos trêmulas do poeta, segurando o couro de cabra avermelhado pela tintura dos versos e suor das próprias mãos, pediu com rigor para ver o que estava escrito nele. E ao ler aquele poema, começou para o poeta sua dupla sina... De profeta do rei e poeta encantado pela princesa Cristal, prometida a um nobre de posto, mas não de sentimento, doutro reino distante... Não podia contar que o quadrante solar que ele se referia nos versos era justamente a janela do quarto da princesa, que se iluminava cada vez que ele a via, ao subir na árvore próxima ao local. Um poeta, naquele reino, era condenado a fazer somente profecias ao invés de escrever poesias, sob pena de ser aprisionado como outros tantos na masmorra do castelo... O livro dos dias , para sua glória e sina, seria lido de agora em diante, e através dos tempos, de forma mística e sobrenatural...

As torres de areia


Próximo ao castelo de Messiter havia uma praia maldita, por conta de seus inúmeros naufrágios. Pela costa se percebia restos de barcos que não sobreviveram às borrascas e bancos de areia. Por ali, o fim do mundo era apenas a ante-sala do inferno.
Em um dia ventoso como outro qualquer, um pescador solitário passeava pela praia deserta, procurando restos de embarcações piratas que o mar trazia à praia. Já achara certa vez uma moeda de ouro, um brinco de pérola e um estranho espelho que mostrava imagens distorcidas e sons guturais, que não deviam ser daquele mundo.
No meio do caminho ensolarado achou uma pequena bola de cristal com um diminuto boneco em forma de gente dentro, indo e vindo sem sair do lugar, aprisionado na água prateada em seu interior.
Uma mulher alta e bela, toda vestida de branco, vindo do nada, apareceu em sua direção, e ele custou a perceber, vidrado que estava naquela pequena bola de cristal.
Num breve instante o mar silenciou. O vento sumiu. O tempo parou. Tudo estava mudado. Um vácuo sobrenatural tomou conta daquela praia.
Lá adiante, o pescador finalmente percebeu a aproximação da mulher toda vestida de branco, bem alta, vindo em sua direção. Ele continuou indo e a mulher vindo, sem a distância se alterar. Quando ele quis voltar, tropeçou nas pernas. O vilarejo em que morava manteve-se distante. E bem diante de seus pés, um pequeno castelo de areia, réplica idêntica do castelo de Messiter, em escala bem menor, talvez 1:1000. E ali, dentro de uma das torres, uma pequena peça de xadrez. A rainha!
Uma tristeza sem motivo tomou conta de seu ser, enquanto a mulher de branco continuava tranqüilamente em seu encalço, caminhando sem sair do lugar. Ele, o aldeão que de vez em quando virava pescador, pensou ser algo sobrenatural, ou um pesadelo muito real, mas o eclipse do sol mudou sua opinião.
Ao olhar para o céu, descobriu algo como um olho escuro e gigante de um menino brincando com sua bola de cristal, correndo por uma praia deserta, feliz por ter encontrado aquele presente caído do céu, enquanto uma mulher de branco, caminhava em sua direção... Gelou de medo ao ver que próxima a ponta elevadiça do castelo de areia tinha um boneco muito parecido com seus trajes. E nos arredores daquela pequena construção de areia e sonho, outras figuras diminutas, entre luzes e sombras estavam plantadas.
Coincidentemente, no mesmo instante, um menino, pequeno ladrão de frutas, fugindo dos guardas do rei, caiu num poço profundo, atrás do castelo, e quando voltou a si, estava num subterrâneo labirinto. Depois de horas e horas - e naquele local o tempo custava muito a passar -, encontrou um túnel que levava a um portão. Estava entreaberto, e ali, mil e um apetrechos de alquimista numa câmara secreta. Sobre a mesa, uma pequena bola de cristal. E quando olhou em seu interior, teve uma visão abissal...

O mago Sidelar


... E o mago Sidelar - demiurgo de si mesmo - que a tudo observa de sua bola de cristal (arquiteto do castelo e seu primeiro ocupante), que a tudo conhece e reconhece, sejam os caminhos e passagens secretas entre o céu e a terra, vive em seu reduto secreto, jogando seus dados em seu tabuleiro mágico. Ali, as pessoas parecem personagens e as personagens tornam-se pessoas. Só o mago sabe distinguir uns dos outros, pois conhece e reconhece todas as entrelinhas do tempo e do espaço.

No buraco da minhoca , Sidelar atravessa os confins do mundo e do tempo. Aquele mundo para ele é um jardim secreto, em que o castelo de Messiter é a jóia rara da coroa, uma pérola dentro de uma concha misteriosa. E ali dentro do castelo há que se buscar pela verdadeira rosa. A rosa tatuada em uma de suas prisioneiras. Entre a torre e a masmorra, a rosa jaz prostrada. E o "claro enigma" é feito de prosa & verso. Caberá ao cavaleiro da espada em cruz ou ao poeta quase profeta decifrá-lo antes que seja tarde demais... A ampulheta dos dias foi virada mais uma vez, e os dados foram jogados no tabuleiro em forma de mini mundo...

Sidelar faz a pena em sua mão voar ao escrever as palavras ditadas pelo vento constante em torno do castelo. Um vento que sussura uma canção em forma de oração, de um menestrel chamado Ritov Milar, que vez em quando assombra o castelo de Messiter com sua flauta encantada, sem que os soldados - com ordem expressa do rei para sua prisão - saibam de onde vem e para onde vai... E a canção ecoa:

Se um dia qualquer
Tudo pulsar num imenso vazio
Coisas saindo do nada
Indo pro nada
Se mais nada existir
Mesmo o que sempre chamamos real
E isso pra ti for tão claro
Que nem percebas
Se um dia qualquer
Ter lucidez for o mesmo que andar
E não notares que andas
O tempo inteiro
É sinal que valeu!

A rainha Tristeza, presa em seu quarto de cristal tem a impressão de que a música encantada, que quase lhe faz levitar e sentir de novo pulsar o frágil coração, sempre vem do bosque sem fim, como que brotasse do meio das árvores. Como se o espírito de um deus estivesse a lhe acompanhar os passos em círculos dentro daquele quarto crespuscular...

Luzes e Sombras


Era um tempo nebuloso, vivido entre a magia e a superstição. Os ventos uivantes competiam com os lobos, que reunidos em círculos, pareciam chamar pelos nomes daqueles que estavam marcados pelo destino.

No céu duas luas, em formação de móbile, apareciam e se escondiam entre nuvens espessas, enquanto dois escudos de fogo sobrevoavam o castelo sem emitir som. O jovem guarda, próximo às torres do castelo viu aquela aparição com profundo espanto. Fez o sinal da cruz e pegou sua espada brilhante. Os escudos caíram próximo ao bosque, onde enormes e misteriosos vultos apareciam entre as árvores. Pensou ouvir cantos profanos e gritos sobrenaturais. Uma revoada de pássaros cortou o silêncio da noite. O soldado segurou com a mão esquerda firmemente a cruz sobre o peito (e com ela o seu segredo) e com a mão direita empunhou a espada circulando, do alto, pelas muralhas do castelo, tentando observar melhor o bosque infernal.

No salão oval, o bispo jogava xadrez com o rei insone. No estábulo, os cavalos aparentavam impaciência. E a rainha vivia aprisionada em seu quarto de cristal.

O soldado, com sua cruz em forma de chave, desceu as escadarias da muralha, indo até um portão secreto, próximo à ponte elevadiça. Ao abrir a porta, assustou-se com duas sombras que passaram por ele apressadas. A primeira a própria, e a segunda de uma jovem vestida de preto, que entre as sombras e luzes do bosque desapareceu assim como surgiu... Olhou para trás e viu o imponente castelo e na muralha, em seu lugar, outro guarda procurando pelo desertor... Sua ação de deixar o posto não tinha mais volta. Então, virou-se em direção ao bosque, pisando sobre as pegadas da mulher que o encantou... A noite estava fria, mas o tremor que sentia era por outro motivo, que naquele momento ainda não podia precisar...

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Pequeno Mundo Pequeno: o blog


Esse blog foi criado por mim, José A.K. Roig, para desmembrar o núcleo narrativo que criei para o projeto de escrita colaborativa do blog RPG - Role Poetic Games (Jogos Poéticos Virtuais), com alguns personagens (Prodigal, Lord Drago, Serena e Insônia) em suas histórias de vida... Nesse Pequeno Mundo Pequeno, em que tudo cabe dentro de um olho vivo ou de uma pequena bola de Cristal...
Aguardem, pois reunirei aqui as postagens que tenho feito pro RPG Literário e as novas que virão...

Observação 1: Imagem acima, extraída do endereço abaixo
http://universo70.wordpress.com/2008/10/

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