sábado, 21 de fevereiro de 2009

O palíndromo e a dupla face


O menino do lago levantou-se do chão com a garrafa contendo o Livro do Destino , fazendo um barulho metálico em seu interior. Ali dentro, estavam três dados de metal (um de ouro, outro de prata e um de bronze), para serem usados junto ao livro. Com aquele pequeno tesouro em mãos, dirigiu-se ao local em que Insônia tinha guardado as coisas de Lord Drago. Entre sete árvores, a sete palmos de terra adentro estava o corpo do cavaleiro do dragão negro. A sete passadas largas ao Norte da sepultura estavam também enterradas a sete palmos de chão toda a vestimenta e armas do guerreiro morto.

Pelo caminho, Prodigal notara que quanto mais se afastava do lago sua pele parecia enrugar ao calor do Sol, e sua mente a esquecer das formas da bela mulher que mergulhara com ele no fundo do lago Azul Profundo. Se de dia a esquecia, a noite voltaria a lembrá-la, encontrá-la? — perguntou a si mesmo.

Depois de lavar a malha, o colete, o elmo, o escudo, a lança e a espada na beira do rio, viu o homem no reflexo da água o rosto de Drago refletido, ao invés do seu. Levou um susto! Se estava ainda sonolento, de todo acordou. Jogou mais água no rosto, e o semblante de menino do lago retornou a sua dupla face. Com a garrafa na mão, retirou o Livro do Destino e os três dados, para guardá-los, como seu Mestre o havia ensinado, num local que somente ele ou seu fiel escudeiro soubesse. Sem ainda ter um ajudante, preferiu correr o risco e ficar com o papiro dentro de sua roupa e os dados grudados no espaço que antes fora da pedra vermelha ─ conhecida como o Coração do Dragão ─, tendo um encaixe perfeito; vestindo em seguida a armadura completa para seguir viagem. Seu cavalo baio estava ali próximo, em uma árvore amarrado. O cavalo negro de seu amo tinha igualmente perecido com seu dono.

Quando o escudeiro, agora travestido de cavaleiro, empunhou firme no braço esquerdo o escudo com a inscrição Nessun Dorma (que ninguém durma) e na mão direita a espada reluzente de Lord Drago, pela primeira vez em eu poder, percebeu pela primeira vez nela curiosa inscrição, em letras diminutas. Palavras que estavam inscritas em um antigo relógio de sol, quando Drago iniciara o menino do lago, filho de Alma (a que se matara) e sobrinho de Vida (a que enlouquecera), em seus estudos de latim e arte da guerra:

- Transit umbra, sed lux permanet. (A sombra passa, mas a luz é duradoura).

Naquele instante, palavras, como flechas, saíram de sua boca, sem ele saber como:

- O meu reino sou eu mesmo e tem em mim a pedra fundamental.

O novo cavaleiro de si mesmo desconhecia muita coisa que o rodeava. Dentre elas que Insônia também conhecia o latim, pois fora a serviçal de um sacerdote atormentado por seus demônios interiores, que a perseguia sem sucesso às noites (quando ela por encanto desaparecia entre os corredores escuros do mosteiro), fazendo-o supliciar-se ao dia, até que a mulher do lago fugiu daquele local, para nunca mais voltar. O padre, todo de branco e repleto de ouro, tinha a alma em total escuridão. Mas foi um outro padre, todo de preto e em completa penúria, que a protegeu do outro, até indicar-lhe o bosque como o reduto onde as mulheres perseguidas pelo falso religioso, pudessem viver em paz. As que resistiam a ele, condenadas por bruxaria, e confessando a heresia, sob tortura, eram levadas à fogueira. Insônia, se não partisse dali, teria o mesmo destino cruel das outras. Contudo, mesmo longe, ela sempre estava por perto de quem precisava de ajuda, conhecendo todos os atalhos que levavam do mosteiro ao Bosque Sem Fim. Um lugar encantado que tinha tal nome, pois aquele que não soubesse andar pelas trilhas ─ como que preso num labirinto de árvores ─, jamais retornava de lá... Porém, existia uma misteriosa profecia que dizia que o bosque poderia perecer o dia em que os Gigantes de Um Olho Só viessem àquela terra visitar.

Prodigal, nada disso sabia, e ao consultar Livro do Destino, jogando os três dados de metal, somadas luas e estrelas neles, dava o número dezesseis, e no verso dezesseis do Livro do Destino haviam igualmente dezesseis versos enigmáticos em forma de palíndromos:

A porta rangia à ignara tropa.
A base do teto desaba.
Lá vou eu em meu eu oval.
A semana toda lemos: só melado tá na mesa.
Assim, a sopa só mereceremos após a missa.
E até o Papa poeta é.
E assim a missa é...
A torre da derrota.
Livre do poder vil.
O mito é ótimo.
Acata o danado... e o danado ataca!
O terrível é ele vir reto.
Reter e rever para prever e reter.
Soa como caos.
Sós: somos sós.
Assam a massa.

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